Discurso sobre o conhecimento a partir de estudo comparativo entre a ‘Intuição Estética’ e a ‘Iluminação mística’

 

Notações Introdutórias e Gerais

 

É sabido que, enquanto indivíduos, todos nós dispomos apenas do conhecimento regido pelo princípio de razão. Na filosofia de Arthur Schopenhauer, por meio desta categoria de conhecimento não podemos conhecer as Idéias, pois, para tanto, teremos de nos elevar do conhecimento das coisas particulares à intuição estética do mundo e deverá ocorrer em nós uma mudança similar e correspondente àquela grande mudança que ocorre na natureza total do objeto mediante a qual, o sujeito enquanto conhecedor de uma idéia, já não mais é indivíduo, mas, tão somente, puro sujeito do conhecer.

O artista cria com base nesse conhecimento objetivo,[1] isto é, aquele que atinge uma idéia. Desse modo, sua obra de arte é o médium, o meio facilitador, importante acessório para o conhecimento da essência da beleza, e sua genialidade é a capacidade de proceder de maneira puramente objetiva, mediante o entusiasmo na vontade desinteressada, propiciadora do estado genial ou puro sujeito que conhece. A isto podemos denominar, ainda, como o claro olho cósmico,[2] numa alusão de Schopenhauer  a um termo famosa na mística[3] filosófica alemã e que se assemelha à noção schellingniana de intuição intelectual eterna. [4]

Em Schopenhauer, a filosofia pôde ser entendida como um tipo de conhecimento mais afeito a arte que ao modo científico de conhecer o mundo. Nele, o gênio artista não busca realizar-se como indivíduo na história, mas, apenas como sujeito do puro conhecer, o que possui um modo muito peculiar de apreender e sentir a realidade, possui o olhar interior, o olho cósmico da mística.[5]

Digo: a essência do gênio é a capacidade de apreender nas coisas efetivas suas Idéias, e, visto que isso só pode ocorrer numa contemplação puramente objetiva, na qual todas as relações desaparecem – em especial as relações das coisas com a própria vontade somem da própria consciência -, então o gênio também pode ser definido como a objetividade mais perfeita do espírito, isto é, a capacidade de proceder intuindo puramente, de perder-se na intuição, de abandonar o conhecimento a serviço da vontade, isto é, de perder de vista seu interesse, seu querer seus fins, de desfazer-se de sua personalidade e permanecer como puro sujeito que conhece, claro olho cósmico. É justamente essa capacidade que diferencia o gênio do homem comum.[6]

 

Para Schopenhauer, o mundo da representação, ou seja, da imagem, objeto da arte, é o mundo da Idéia ou da verdadeira realidade, o mundo da visão. Nenhum sentido humano possui maior objetividade que a visão. Os demais sentidos, principalmente: o olfato e o paladar são apresentados na Metafísica do Belo como os sentidos subjetivos por excelência. Mas, “O olho (...) é o único sentido puramente objetivo, que serve exclusivamente ao conhecimento, sem que a sua sensação estimule de imediato à vontade. Destarte, ocorre que a visão da luz, ou seja, o estímulo da atividade sensória do olho, já nos alegra espiritualmente de imediato e por si mesma.” [7]

Portanto, no plano da visão, da representação e das imagens se desvela a Idéia a partir da intuição estética que é: a visão desvinculada de todo e qualquer apelo do mundo da Vontade. A visão é o único sentido puramente objetivo, ela é o modo de conhecimento intuitivo mais perfeito, o modo da satisfação que é dado aos sentidos como parte da fruição estética. Nesse sentido, o filósofo destaca que a luz torna possível a visão e possui “beleza própria [ela] faz efeito, esteticamente, por si mesma (...) sendo o correlato e a condição do modo de conhecimento mais perfeito, o único que não afeta de imediato à vontade, ou seja, a visão”.[8] Ele alega ainda que, decorre disto, o sentimento de satisfação pelo puro conhecimento intermediado pela visão na base dos processos subjetivos daquele que vê e que isto é a alegria do belo que caracteriza o mero subjetivo na satisfação estética. Acrescendo ainda que, “com esse lado subjetivo da contemplação estética sempre entra em cena simultaneamente, como correlato necessário, o lado objetivo, o conhecimento intuitivo da Idéia”.[9]

A condição a priori do objeto perceptível é o sujeito, e, tudo que existe, existe para um sujeito cujas formas geradoras da multiplicidade são o tempo e o espaço.

Em Schopenhauer, o sujeito conhece e nunca é conhecido, não estando propriamente, também, compreendido pelo tempo e pelo espaço. Desse modo, o mundo como representação se divide em duas metades necessárias, essenciais e inseparáveis: o sujeito e o objeto. Tempo e espaço são as formas essenciais e gerais de todo objeto, são formas gerais da intuição, intuídos por si e independente de toda experiência; representam ainda, a base da matemática em sua indefectibilidade quantitativa. Entretanto, o sujeito mesmo, isto é, sujeito completo e indivisível, cada ser capaz de representação, só se encontra fora de ambos. Pelo que se conclui aqui que o mundo como representação desapareceria se desaparecessem todos os sujeitos, porquanto essas duas metades possuem sentido única e exclusivamente uma para a outra. Como assevera o filósofo: “Onde o objeto começa termina o sujeito”.[10] Isto, conforme o princípio de razão seja a expressão comum das formas a priori do entendimento, e, tudo que podemos saber de puramente a priori, isto é, o conteúdo não dado ao entendimento deste princípio; senão pela intuição estética, na qual se expressa todo conhecimento imorredouro e objetivo. 

As representações podem ser intuitivas ou abstratas. Nesta última classe incluem-se os conceitos que são formulados pela capacidade racional. Enquanto que, no caso das representações intuitivas, elas são as que abarcam todo o mundo da experiência e sua condição de possibilidade.

Na Crítica de Schopenahuer à filosofia de Kant, podemos entender que a intuição estética não é utilitarista, e, o conhecimento objetivo não é conhecimento instrumental. Para Kant, o sujeito en-forma o objeto[11], mas não na sua essencialidade, desse modo, a coisa em si poderia ser pensada, mas, não poderia ser conhecida.

Segundo Schopenhauer, a ciência causal não pode nos dar o conhecimento do todo porque a Idéia é objeto da arte, e, as obras de arte são as únicas objetivações capazes de nos elevar mais facilmente a ela. Nesse sentido, a música, por exemplo, é a arte sem mediação porque não possui representação externa, sendo o que há de mais metafísico no mundo físico.[12]

O conhecimento quantitativo do modo de pensar aristotélico, contrapõe-se ao do modo platônico, representante do conhecimento qualitativo, e, as artes repetem o mesmo de forma diferente, sempre com o fim de comunicar a Idéia que, principalmente, no caso da música, é apreendida de forma direta pelo sujeito puro do conhecer.

É possível conhecer objetivamente por meio da arte. Isto difere do que ocorre na estética[13] kantiana, onde a arte não é aceita como conhecimento objetivo e o conhecimento abstrato provém de uma dimensão espaço-temporal, diferindo, por isso, do conhecimento intuitivo de que trata Schopenhauer, para quem relacionar representações é abstrair e isto não pode ocorrer à parte do princípio de razão, tampouco pode propor a realidade, ou o em si objetivamente; a não ser por meio da intuição estética que, num lampejo fugaz, discerne o discurso da Idéia a partir das coisas, por meio de uma contemplação objetiva desinteressada. Desse modo, não deve haver atividade de relação entre coisas e termos no conhecimento da coisa em si.

Como vemos, ao contrário da ciência, a arte “encontra em toda parte seu fim”. Nela, o particular contemplado à parte do tempo, representa conhecimento universal. O que implica dizer que: a arte se detém no objeto de sua contemplação fora do curso racional das conexões causais, tornando-o de uma mera parte a um representante do todo e, conforme o filósofo, “um equivalente no espaço e no tempo do muito infinito. A arte se detém nesse particular, a roda do tempo[14] pára; as relações desaparecem para ela. Apenas o essencial, a Idéia, é seu objeto”.[15]Portanto, para Schopenhauer, o modo próprio de consideração alinhado com o princípio de razão é o peripatético ou racional. Este modo determina o desenvolvimento da ciência e é fundamental para a vida prática. De forma contrária, o modo de consideração das coisas relacionado ao platonismo, ele denomina de genial, este é o que fundamenta o desenvolvimento da arte.

Assim sendo, o curso do mundo é objeto da ciência, como ocorre na História[16], por exemplo, e o objeto da arte, é a própria Idéia. A história se repete e os seus personagens são sempre os mesmos, porque a Idéia é um todo indissolúvel que, naquela, se apresenta de forma fragmentada, portanto, não essencial.

Na intuição estética, contudo, o objeto é o foco em si, arrancado de todo e qualquer nexo causal, passa a ser a Idéia ou o objeto da consideração estética, a objetidade adequada da Vontade num grau determinado e que se esforça por “revelação”. É quando o homem concentra toda força do seu espírito na visão intuitiva, absorvendo-se inteiramente nela, inundando sua consciência com a contemplação dos objetos naturais a ponto de neles se perder, duvidando de si mesmo e de sua própria verdade, convertendo-se em puro sujeito que conhece e refletindo nitidamente o objeto, de tal modo que o coloque como que isolado de suas relações no mundo até que não seja possível separá-lo de sua percepção pelo sujeito.

Sujeito e percepção tornam-se uma só coisa, pela inundação e completude da consciência numa imagem intuitiva isolada. O próprio sujeito torna-se emancipado do desejo e desprendido de toda e qualquer relação de causalidade, sendo um com o objeto isolado em sua consciência. O conhecido que deriva deste processo deixa de ser o de uma mera coisa no mundo passando a ser a própria Idéia, a forma eterna da objetividade imediata da Vontade num grau.

Sempre que aquilo que fizer efeito na mente for o pensamento abstrato em detrimento do elemento intuitivo, a idéia não entrará em cena. Com isto, Schopenhauer percebeu que a natureza da intuição estética é transcender a natureza racional, no sentido de ser possibilidade de contemplação do objeto real.

Desse modo, notemos ainda que o Gênio schopenhaueriano é como que, um daimonion [17]ou disposição estética voltada para o aspecto qualitativo e essencial do mundo; e nada tem em comum com aquela noção posterior que se convencionou a partir da modernidade, fixando-se culturalmente como um coeficiente quantitativo de inteligência. Ele é um incomum fenômeno enérgico da vontade, fenômeno irracional que se assemelha à loucura. Nele a intuição estética dá-se como momento de liberdade do sofrimento causado pela abordagem fenomênica do mundo. Sua ocupação, seu modo de agir e seus objetivos no mundo são bastante incomuns, como podemos observar a seguir: “A Idéia, no entanto, torna-se comunicável apenas pela obra de arte, enquanto a essência inteira torna-se exponível apenas pela filosofia. Eis porque a arte, tanto a plástica quanto a poesia e a música, bem como a filosofia, são o círculo de atuação propriamente dito e o estofo das obras do gênio”. [18]

A intuição estética possibilita superar o modo velado e limitado de conhecer o mundo, e, então, atingir o conhecimento objetivo do mundo, e exige o rompimento do princípio de razão. Por isto, inguém será propriamente sábio ou santo, caso a sua visão de mundo e a sua conduta permaneça pautada por uma ética da diferença entre homem e homem, uma ética fundamentada, por assim dizer, na superfície e não na Idéia de humanidade. Notemos, ainda, que o conhecimento mais profundo da ação humana e do sentido mais amplo da humanidade só é possível ao artista e ao santo.

Contudo, relembremos como Platão em seu famoso Mito da Caverna, ilustrou magistralmente o problema que haveria de enfrentar alguém que tivesse a oportunidade de viver o desvelamento do mundo das sombras e de uma mundivisão oprimida e limitada; preposta por circunstâncias adversas e, em seguida, tentasse levá-la àqueles que não suportariam se libertar da escuridão. Destacando os perigos que o conhecimento genial podem representar para que o adquiri.

Utilizando uma figura de linguagem mais afeita ao vocabulário de Schopenhauer - podemos afirmar que a intuição estética, a clarividência da razão e a possibilidade estética de uma mística filosófica serão sempre inviáveis, na medida em que o conhecimento permaneça na miragem, quer dizer, na aparência, no engano, e na ilusão de Maia. Nesse sentido, o conhecimento objetivo da conduta humana é o que proclama tat-vam asi[19], e, ao fazê-lo, o véu do engano se esboroa e, por fim, torna-se nada.

É, pois, tão somente no homem que a vontade pode se aplicar desinteressadamente a contemplação de si mesma pelo conhecimento objetivo, ou aquele que se dá mediante a intuição estética. Podemos afirmar, sem qualquer desrespeito à filosofia de Schopenhauer, que a intuição estética está para o artista, na mesma medida da clarividência do santo – neste tabalho a expressão Olho cósmico da mística será tomado em sentido idêntico - ambas, são perfeitamente aptas ao conhecimento objetivo do mundo. Hipótese 1. Destarte, aquilo que diferenciaria a conduta do gênio esteta à do santo, ou a base teórica da terceira e da quarta seção de O mundo como vontade e como representação, seria mais a opção por um modo de vida distinto do que, propriamente, um estado mais ou menos duradouro na intuição cósmica.

Há, para Schopenhauer, um estado ideal, no qual o espírito humano torna-se pleno de satisfação pela anulação da vontade que propicia o conhecimento mais objetivo do real. O conhecimento objetivo, o da intuição estética, proporciona adentrar ao domínio da plena liberdade; momento ‘divino’, ainda que fugaz, porque: uma vez recobrada a consciência da vontade de si, esfuma-se a satisfação que volta a ser anulada pelo desejo.[20]

Hipótese 2 - Portanto, a atividade artística pode ser entendida como um correlato da obra de arte, onde ela fica entendida como o impulso artístico na natureza humana, cujo fim seria o de juntar-se à unidade infinita da arte Divina, num tipo de unio mystica do artista com a Vontade na natureza - para fazer referir aqui a expressões, termos e noções que, desde Schopenahuer, remontam à mística filosófica alemã de Boehme e se enraizam em elementos da mística hindu, dentre outras, como na sabedoria acerca do Wu wei: “Via mística do conhecimento: deixar ser, agir, conhecer, exclusivamente pelo Tao, renunciando o ato de ser, agir e conhecer por si, permitindo ainda que seja”. [21]

Schopenhauer, aludindo à mística cristã e referindo-se a Malebranche, para quem a liberdade é denominada graça eficaz e a regeneração é a única manifestação imediata da liberdade da vontade capaz de chegar ao conhecimento de si mesma, isto é, de sua própria essência na qual repousa e se subtrai à influência dos motivos, que se movem noutra esfera do conhecimento e cujo objeto deixa de ser o fenômeno, destacou que “o caráter mesmo, pode ser anulado por uma Supressão da vontade (metamorfosis católica e transcendental) ou conversão operada no conhecimento.

“Toda coisa é bela”.[22] Evidencia-se disto, o fato de que tudo que há no mundo manifesta uma Idéia própria. A coisa isolada pelo artista funciona como um tipo de portal visual pelo qual o observador se projeta na Idéia, por meio da intuição estética ou estado da intuição pura. Cada objeto manifesta uma beleza particular que é a Idéia a exprimir-se desde a natureza orgânica, passando pela inorgânica até as obras sublimes da arquitetura ou das artes plásticas, até a poesia e a música, que é o que de mais metafísico pode haver no mundo físico, pois não demanda qualquer mediação do intelecto. “A música nunca expressa ou copia o fenômeno, mas unicamente a essência íntima, o Em-si de todos eles, a Vontade mesma. (Schopenhauer, In Metafísica do Belo, p. 234).

Segundo Schopenhauer, a ciência causal não pode nos dar o conhecimento da coisa em si, pois a Idéia é objeto da arte, e, as obras de arte são as únicas objetivações capazes de nos elevar mais facilmente a ela. Nesse sentido, a música, por exemplo, é a arte sem mediação por não possuir representação externa, sendo o que há de mais metafísico no mundo físico.[23]

A objetidade adequada da Vontade são as Idéias. Estimular o conhecimento delas mediante a exposição de coisas isoladas é o objetivo de todas as outras artes, as quais sem exceção objetivam a Vontade, todavia apenas mediatamente, isto é, por meio de Idéias. Ora, como nosso mundo nada mais é do que o fenômeno das idéias na pluralidade, mediante sua entrada no principium individuationis (forma de conhecimento do indivíduo), a música visto que vai além das Idéias, é também por inteiro independente do mundo fenomênico, ignora-o absolutamente e poderia, por assim dizer, existir mesmo que ele não existisse, algo que não se pode dizer das outras artes. [24]

 

A música é a única expressão humana da Vontade mesma e [25] foi apontada, dentre as artes[26] como a mais privilegiada de todas para tal fim, por ser uma “linguagem” que propõe a Idéia sem mediação do entendimento e, portanto, ser o que há de mais metafísico no mundo físico: a manifestação ou fato mais em si no mundo dos fenômenos. Desse modo, o mundo como vontade ou da coisa-em-si se abre ao modo de conhecer desinteressado que o olhar cósmico da experiência estética proporciona. Portanto, o mundo pode ser conhecido, acessado de uma maneira livre de todo sofrimento, ainda que por breve período de tempo, porque a vontade de vida imperativa no homem, ainda que de vida de sofrimento vão, não se submete totalmente a uma supressão momentânea do tempo e do espaço, e que não pode subsistir sem seu foco no princípio de causalidade ou de razão. Assim, a libertação da prisão do desejo, quando ocorre, é sempre fugaz, como num insight de pura contemplação oriunda da fruição estética do belo. Esse estado ou modo muito peculiar de ver o mundo liberta o homem, propondo a possibilidade de uma vivência mais essencial. Como o filósofo observou:

 

Devemos considerar a arte como a grande elevação, o desenvolvimento mais perfeito de tudo isso, pois realiza em essência o mesmo que o mundo visível, apenas mais concentrada e acabadamente, com intenção e clareza de consciência e, portanto, no sentido pleno do termo, pode ser chamada de florescência de vida. Ora, se todo o mundo como representação é a visibilidade da Vontade, a arte é o clareamento dessa visibilidade, a câmera obscura que mostra os objetos mais puramente, permitindo-nos melhor abarcá-los e compreendê-los; é o teatro dentro do teatro, a peça dentro da peça em Hamlet. [27]

 

Comparando as várias formas de belas artes, Schopenhauer entendeu que somente a música não copia como as demais artes, as Idéias, mas ela tão somente expressa a Natureza e a Vontade mesma. Portanto, esta arte pode expressar o conhecimento, seja do comportamento humano , seja da natureza de modo geral, de forma mais objetiva do que as demais. Isto inclui expressar a essência do artista e do santo de forma igualmente magnânima.   

A Metafísica do Belo conteria elementos teóricos suficientes para, em certo sentido, englobar e superar toda e qualquer proposta estética ou ética com base na razão pura, porque a música é a única expressão humana da Vontade mesma. Destacando que o autor buscou elementos da mística de várias culturas e civilizações antigas para melhor explicitar sua metafísica.

 Portanto, não é sem segura justificativa e referencial teórico que o autor apresenta uma via para desenvolvimento teórico acerca da possibilidade de uma intuição estética do som ou musical conjugada com a noção de Olho Cósmico da mística, no intuito de apresentar uma crítica do modelo convencional, e dogmático até, de conhecer o mundo e de fundamentar a ciência humana.

 

 



[1] Cf. SCHOPENHAUER, 2003, p. 15, linhas 14-22. Sobre a verdade da intuição estética ou conhecimento objetivo.
[2] “A sabedoria permanece diante da Divindade como seu reflexo ou espelho, onde a Divindade se mantém e nela repousa o reino divino da alegria e da vontade divina, ou seja, as grandes maravilhas da eternidade, que não tem começo nem fim, nem número, mas tudo é um eterno começo e um eterno fim, e junto   assemelham-se a um olho que vê, onde contudo não há nada a vista, ainda que a vista surja da essência do fogo e da luz.” (In J. Boehme, A encarnação do verbo, I, 12)
[3] Aqui se insere um conceito bastante interessante que remonta, dentre outras noções ao longo das culturas humanas, ao antigo Olho de Hórus dos egípcios. Eles acreditavam que a Águia era filha do Sol e da Lua, ela depositava os ovos no alto da montanha, durante a noite e que o Faraó vigiava o seu povo pelo olho da águia, o animal que voa mais alto e por mais tempo. A divindade associada a isto é Atum-Rá e a representação gráfica desta crença foi, mais tarde, chamada de Olho de Hórus. Esta figura foi encontrada no peitoral de Tutancamon no invólucro da múmia, e pode ser visitada no Museu Egípcio do Cairo. Posteriormente, a antiga mística cristã se referia ao Olho da Providência, ou, pelo viés alquímico o Olho que tudo vê. A mística filosófica de Jacob Boehme (1575-1624), autor de obras famosas como As quarenta questões sobre a alma, a quarta obra escrita pelo Príncipe dos filósofos divinos, considerado o primeiro filósofo alemão. Ele é citado por Schopenhauer que também faz referência ao Olho cósmico da mística. Atualmente, a astronomia contemporânea nomeou Nébula Hélix, uma nebulosa que fica a 700 anos-luz da Terra, na constelação de Aquário, como ‘Olho de Deus’ ou ‘Olho cósmico’.
[4] Cf. SCHOPENHAUER, 2003, p. 66 (N.T). Vidi 8a. Carta sobre o dogmatismo e o criticismo. In SCHELLING, F. von. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).
[5]  Olho cósmico ou sujeito puro do conhecimento é o estágio final de consciência que consiste unicamente no conhecimento imediato da essência do mundo. Portanto, felicidade e infelicidade são estados ilusórios superados e que desaparecem, como disse Schopenhauer: “Tudo isso provém do fato de que, no instante do abandono ao intuir puramente objetivo, libertamo-nos de todo querer, e, com isso, como que entramos num outro mundo, onde tudo o que antes excitava a Vontade e nos abalava tão veementemente desaparece”.  In SCHOPENHAUER, 2003, p. 94.
[6] SCHOPENHAUER, 2003, p. 66.
[7] SCHOPENHAUER, 2003, p. 99.
[8] Idem p. 98. Este é o nível de total ausência da consciência cognitiva. Esta é a dimensão a ser explorada, a da intuição estética. Nela, a própria essência da imanência daquilo que somos é revelada no sujeito do puro conhecer.
[9] Ibidem p. 98.
[10] Ibid.
[11] Kant afirma no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura: "Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha que se regular pelos objetos; porém todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que ampliaria o nosso conhecimento, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso, tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos objetos que deve estabelecer algo sobre os mesmos antes de nos serem dados". In KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto e Alexandre Fradique Moraujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
[12] Cf. SCHOPENHAUER, 2005 § 52 p. 338.
[13] Viva a diferença! Mesmo na Vontade, a individualidade é única. A ‘estética’ de Schopenhauer se filia à tradição neoplatônica, onde a arte visa ao originário, remonta aos princípios. O fim supremo da arte é a manifestação da essência da humanidade na unidade deste particular que expressaria a sua beleza própria ou Idéia. Contudo, tentar transcender a sensibilidade do mundo material por força da pura idealidade da Idéia, parece ter sido o erro do platonismo. A poesia e a arte em geral, ambas estão ligadas ao sensível visando à Idéia. Cf. SCHOPENHAUER, 2003, p. 124 (N.T).
[14] O tempo presente da vida, enquanto representação, só deixa de ser vazio e sem sentido mediante a Vontade ou coisa em si que é o único real, entendido em Schopenhauer como manifestação diversa da Vontade una que se mostra como que pulverizada na diversidade dos fenômenos. No capítulo dois teceremos algumas considerações sobre o tempo da Vontade.
[15] SCHOPENHAUER, 2003, p. 59.
[16] Cf. SCHOPENHAUER, 2003, p. 55 (N.T).
[17] No chamado estado genial, como ocorre também no estado ascético, o princípio de individuação é superado. Isto pode ser verificado tanto na Metafísica do Belo quanto na Metafísica da Ética. Nesse sentido, não há qualquer exagero em entender que o santo é eticamente genial e que, o gênio, é esteticamente santo. Genialidade e santidade devem ser entendidas como uma disposição natural que, em alguns seres humanos, se manifesta de modo excessivo, disposição excedente ao que ocorre com os demais e que, em grau supremo, tanto na estética como na ética, é um tipo de ‘aberração’ da natureza, dada sua escassez ou raridade no mundo. É bem verdade que o termo, em algumas acepções do sentido grego clássico, se denominava daimonion ti, um tipo de loucura divina. Sócrates está, pelo menos parcialmente, dentro da tradição religiosa arcaica quando fala do seu “algo divino” daimonion ti, que o aconselha a evitar certas ações. In Apologia. 31d; a sua operação é consideravelmente mais vasta no relato de Xenofonte no seu Memorial. I, 1, 4 - obra composta de sete manuscritos - também é notável o uso constante que Sócrates faz da forma impessoal da palavra ou do sinônimo “sinal divino”, In Fedro 242b. Possui ainda outras utilizações no mundo grego, no Timeu 90a, o próprio Platão o identifica com a alma e pode ver-se um reflexo disto, por exemplo, em Meditações II, 17, III, 16  - Obra de filosofia estóica de Caesar Marcus Aurelius Antoninus Augustus, o Imperador Filósofo. 121 a 180 a.D. Mas, numa outra noção, a termo se refere a uma figura intermédia entre os Olímpicos e os mortais e está também presente em Platão no Eros demoníaco do Symp. 202d-203ª.
[18] SCHOPENHAUER, 2003, p. 78.
[19] “Este conhecimento cuja expressão ao uso no sânscrito é a fórmula ‘tat-vam asi’, quer dizer ‘tu és isto’, é o que aparece como compaixão; no que, por tanto, se baseia toda virtude autêntica, quer dizer, desinteressada, e cuja expressão real é toda boa ação. É em último termo a este conhecimento a que se dirige toda apelação e clemência, à caridade, à misericórdia em lugar da justiça: pois tal apelação é uma lembrança da consideração na que todos somos um e o mesmo ser”. In SCHOPENHAUER, 1993. Los dos problemas fundamentales de la ética, p. 295. Embora a ética possa assumir um caráter de primazia no pensamento de Schopenhauer, a virtude do santo e assim, também, a obra do artista genial, ambas são produzidas mediante uma vontade desinteressada e a consideração de que todos são um não pode significar uma coisa que não coadune com a noção de Olho Cósmico e que não faz sentido do ponto de vista meramente empírico e racional, embora implique em ciência profunda e verdadeira.
[19] Lembremos que, a liberdade pode ser entendida aqui como o ir de encontro à necessidade que impõe a impossibilidade de o homem ser de outro modo. Nesse sentido, isto é o que ocorre tanto ao artista como ao santo.
[20] Originalmente, estamos a serviço da Vontade no que concerne ao conhecimento empírico em geral. A fugaz satisfação de um determinado saber não pode calar a Vontade cósmica. Desse modo, na medida em que avança o hábito, pela repetição contínua do desejo, decresce o contentamento. Todo desejo de contentamento é poço sem fundo, é depressivo. O sujeito do querer é o principal adversário do sujeito do puro saber, e, o sofrimento é perpetuado no mundo pelos sujeitos da Vontade. Veremos nos itens 2.1 e 2.3 que a diferenciação da liberdade fugaz do artista e a duração da clarividência do santo ficaria seriamente comprometida mediante a noção de Nunc stans.
[21] In Laozi. Dao de Jing. Org. e trad. Mario B. Sproviero – São Paulo: Hedra, 2007; p. 27.
[22]  In Metafísica do Belo - 2003, p. 121.
[23] Cf. SCHOPENHAUER, 2005 § 52 p. 338.
[24] In Metafísica do Belo, 2003, p. 229.
[25] “O mundo fenomênico, ou a natureza, e a música devem ser vistos como duas expressões distintas da mesma coisa. Tal coisa mesma, a Vontade, é, por conseguinte, a única analogia que intermedeia os dois, o tertium comparationis, cujo conhecimento é exigido para se reconhecer a analogia. A música, por tanto, caso vista como expressão do mundo, é uma linguagem universal no mais supremo grau, que está até mesmo para a universalidade dos conceitos como aproximadamente estes estão para as coisas isoladas. Sua universalidade, entretanto, não é de maneira alguma a universalidade vazia da abstração, mas de um tipo totalmente outro, ligada a uma determinidade mais distinta e persistente. Ela se assemelha, assim, às figuras geométricas e aos números, que, como formas universais de todos os objetos possíveis da experiência, aplicáveis a todos a priori, não são, no entanto, abstratos, mas, passíveis de intuição e sempre determinados.” In SCHOPENHAUER  2003, pp. 234-235.
[26] No fragmento VI da Origem da Tragédia, Nietzsche trata do conhecimento puro na liberdade da música criticando o dualismo schopenhaueriano que é constituído pela dicotomia entre 'vontade' e 'representação' e é enfatizado com maior força ainda pela sua insistência na antítese absoluta entre 'vontade' e 'intelecto'. O dualismo correspondente em A Origem da Tragédia é entre o Dionisíaco e o Apolíneo. Criticando O mundo como vontade e como representação, Nietzsche afirmou: “Mas há algo muito pior no livro, que agora lamento ainda mais do que ter obscurecido e estragado com fórmulas schopenhauerianas alguns pressentimentos dionisíacos: a saber, que estraguei de modo absoluto o grande problema grego, tal como ele me havia aparecido, pela ingerência das coisas mais modernas!” In NIETZSCHE, Friedrich W. A origem da Tragédia. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras. 2005.
[27] SCHOPENHAUER, 2005, § 52, p. 349.

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